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Madureira e o samba renascem com o título da Portela e do Império Serrano

  • Leandro Neves
  • 4 de mar. de 2017
  • 5 min de leitura

Mestre-sala e porta-bandeira da Portela no Parque Madureira
Foto: Maíra Coelho/Agência O Dia
Enredo da Imperatriz e da Portela retomam essência reivindicatória do samba
O elemento mais importante da vida, foi o responsável pelo renascimento da Portela e pelo retorno do Império Serrano à elite do carnaval. A seca de 33 anos da azul e branco sem um título foi encerrada com um enredo- manifesto sobre a água doce, seus mananciais e a vida que se desenvolve em torno dela.
A fonte que saciou os portelenses foi tão farta que regou toda a região de Madureira e fez brotar o Império Serrano de volta no Grupo Especial depois de oito anos. A verde e branco da Serrinha fez uma homenagem ao escritor Manoel de Barros e ao Pantanal, uma região onde a água doce é o elemento essencial para diversidade de fauna e flora locais.
A coincidência da vitória das duas escolas de Madureira é fruto de uma vocação e talento natos deste pedaço do território carioca para o samba. E mais do que isso, é o reconhecimento de quão importante é valorizar as raízes deste ritmo que nasceu com uma missão muito além de meramente musical: um instrumento de manifesto.
O teor dos enredos de Império e sobretudo da Portela resgata a origem do samba como protesto em prol da valorização da cultura africana. Após o fim da escravidão, no final do século XIX, os negros livres do Rio de Janeiro foram em busca de uma nova vida e encontraram nos morros e subúrbios da cidade um espaço para recomeçar.
Berço da cultura africana no Brasil
A região de Madureira foi uma das que mais recebeu a população negra e se tornou um dos berços do renascimento da cultura africana no Brasil. Desse chão onde a vida se renovou, a liberdade deu origem à manifestação de todo tipo de arte, dentre as quais o samba.
O desenvolvimento desta expressão cultural nas terras de Madureira, que culminou na criação da Portela e do Império Serrano, tornou-se portanto um clamor. Foi o samba o principal responsável por chamar atenção da sociedade para os negros, ainda muito discriminados na sociedade pós-escravidão, e por demonstrar a riqueza da cultura e do talento deles.
Tia Surica da Portela, de 76 anos, representa a Velha Guarda de Madureira e é uma das primeiras gerações do samba. Sem o esforço dela e de seus contemporâneos, provavelmente o ritmo não teria crescido tanto e se tornado um fenômeno brasileiro. A taça da azul e branco brinda os grandes incentivadores do samba ao longo da história e todos que ainda trabalham em prol deste ritmo e do carnaval genuíno.
Títulos lavam a alma do carnaval carioca
É neste sentido que os títulos da Portela e do Império se tornam ainda mais simbólicos. Em uma época onde a indústria do carnaval se mostra cada vez mais desligada do sentido primordial do samba, a vitória da tradição reafirma o valor e importância de se preservar as raízes desta expressão cultural.
Além disso, essa vitória foi um alento em um ano que a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo Especial) demonstrou amadorismo e menosprezo à vida humana, com decisões equivocadas durante e após os desfiles.
A continuação da apresentação da Unidos da Tijuca, após um acidente grave com o carro da escola, foi a prova de que a Liga põe a competição acima da integridade dos foliões. A decisão de não rebaixar nenhuma escola ratificou essas avaliações, pois foi tomada sem se ter qualquer conclusão das investigações sobre o acidente da Tijuca e da Paraíso do Tuiuti. Longe de ser técnica, a decisão foi política.
Política só se for como manifestação
Ao contrário da atitude da Liesa, o caráter reivindicatório do enredo da Portela de fato representou o interesse popular. Mais do que uma mensagem para o mundo do samba, o desfile portelense veio em um momento apropriado em âmbito global e nacional. O clamor pelas águas do planeta expôs a criminalidade em todo o globo contra a fonte da vida, seja pela poluição de rios e outros mananciais, como lagos e lagoas, seja pela destruição de matas e florestas.
O ponto alto da escola de Paulo Barros, e um dos mais emocionantes deste carnaval, foi o carro alegórico que representou o maior desastre ambiental do Brasil, no Rio Doce, que corta os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A alegoria representou o impacto da destruição da barragem da empresa Samarco na cidade de Mariana e demais municípios que são banhados pelo rio. O sofrimento das populações ribeirinhas foi o destaque principal do carro, de detalhes e expressividade comoventes.
Este protesto da Portela foi um presente ao desabafo feito esta semana por uma das maiores sambistas do mundo, a autora e cantora Beth Carvalho. Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, publicada na Folha de S. Paulo, Beth alertou sobre a perda do caráter reivindicatório dos desfiles das escolas de samba. Este papel, segundo a sambista, estaria sendo ocupado pelos blocos de rua, que em 2017 tiveram nas marchinhas e fantasias o pedido pela saída de Michel Temer da presidência da República.
Imperatriz se impôs às ameaças do agronegócio
E este ano não foi só a Portela que mostrou a força reivindicatória do samba. A Imperatriz Leopoldinense, que trouxe um clamor pela região do Xingu, no norte do país, fez críticas ao desmatamento da floresta amazônica. O desfile mostrou a destruição da natureza e das terras indígenas provocadas por queimadas a serviço do agronegócio, pelo corte de madeira para venda e pela construção de grandes empreendimentos, como a usina hidrelétrica de Belo Monte.
Várias ameaças de políticos e empresários do agronegócio foram feitas. O senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) chegou a propor abertura de uma CPI para investigar as fontes de financiamento da agremiação. Várias associações também criticaram severamente a escola, como a Acrissul (Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul), que chamou os autores da letra do samba da Imperatriz de “ignorantes” e “mal sujeitos”. A Imperatriz, entretanto, se manteve firme em seu propósito de levar sua reivindicação à Sapucaí.
Essa posição da agremiação do bairro de Ramos, na zona norte, juntamente com o desfile da Portela, demonstra o poder que o samba tem para denunciar os problemas do país e do mundo. A repercussão nacional e internacional dos desfiles do Sambódromo, um dos fatores que deixaram os agentes do agronegócio extremamente irritados, são arma para dar voz às comunidades.
Enquanto o samba for feito pelo e para o povo, ele se manterá forte. A escolha constante de enredos patrocinados que estejam descolados do sentido das comunidades descaracteriza e enfraquece o carnaval carioca. O samba nunca vai morrer enquanto for fiel às suas origens.

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